Competências e habilidades: elementos para uma reflexão pedagógica.
Por quê? Para quê? Para quem? Como?
Texto apresentado durante o encontro com professores na FATEC – PINDAMONHANGABA
03/02/2020
Atualmente, propaga-se que a sobrevivência no mercado de trabalho depende da aquisição de novas qualificações profissionais, uma vez que tem sido cada vez mais demandado um trabalhador com conhecimentos atualizados que apresente iniciativa, flexibilidade mental, capacidade crítica, competência técnica e capacidade inovativa, e que seja capaz de lidar com novas informações, as quais se apresentam em maior quantidade, com novos formatos e novas formas de acesso (BRASIL, 1998).
O enfoque da formação baseado em competências tem suas raízes na década de 1920, nos Estados Unidos, embora só tenha ganhado destaque a partir da década de 1960, quando foi retomado o debate clássico do distanciamento entre o ensino acadêmico e a realidade da vida e do trabalho (Organização Internacional do Trabalho, 1999), sendo um dos pioneiros David McClelland, o qual argumentava que os tradicionais exames acadêmicos não garantiam o desempenho no trabalho nem o êxito na vida. Dessa forma, era necessário buscar outras variáveis – competências – que pudessem melhor predizer os resultados. Foi assim que surgiu, na década de 1970, o movimento denominado “Ensino baseado em competências”. Sob essa perspectiva, o processo de formação adquire novos contornos. Propõe-se que seja definido em termos de competências terminais exigíveis ao final do curso, ano, ciclo ou formação, as quais são explicitamente detalhadas e descritas em termos de saberes e ações, devendo ser avaliadas por meio de critérios de desempenho previamente definidos (Araújo, 2001; Tanguy, 2003).
A organização curricular deve pautar-se pelos elementos de competência, identificados e normalizados, que dão subsídios ao desenho dos programas formativos. Os conteúdos – saber – incorporam elementos do saber-fazer e do saber-ser, e ganham “um sentido largo, constituindo-se não somente dos conhecimentos teóricos formalizados nas matérias e disciplinas, mas de habilidades cognitivas, atitudes, comportamentos, hábitos, posturas, elementos que possam compor uma capacidade de trabalho” e que remetem a um saber, a um saber-fazer e a um saber-ser vinculados a um contexto específico (Araújo, 2001, p. 46). Além disso, os currículos direcionam-se para desenvolver a capacidade de resolução de problemas, compreendendo conhecimentos gerais e profissionais, e a experiência de trabalho, que é vista como essencial para alcançar esse fim.
A proposta de formação por competências defende a passagem de um ensino centrado nos saberes disciplinares a um ensino que produza competências verificáveis em situações e tarefas específicas (TANGUY, 2003).
Para isso, preconiza-se, entre outros, o uso de práticas de alternância, visando superar as propostas de formação que se apoiam unicamente nos conteúdos disciplinares e como forma de aproximar teoria e prática. Isso implica alternar períodos de formação realizados em empresas com outros cumpridos em instituições específicas de educação (ARAÚJO, 2001).
Assim, pode-se inferir que a tarefa do professor em todos os níveis de ensino, nos dias atuais, vai muito além de ensinar e transmitir informações. As novas exigências postas pela contemporaneidade têm provocado a necessidade de um repensar o ofício docente e ampliar o leque de suas atribuições.
Os docentes universitários são chamados a trabalhar com seus alunos não só informações, mas lhes possibilitar a transformação destas em conhecimentos, e, para isso, faz-se necessário o domínio de uma nova lógica na condução do processo ensino-aprendizagem ou de “ensinagem” – Ensino com foco na Aprendizagem do estudante.
Destaca-se, portanto, o trabalho do professor e da instituição de ensino superior no sentido de possibilitar, além do domínio dos conteúdos básicos dos diferentes campos do conhecimento, o desenvolvimento de habilidades e competências para utilizá-los na formação e, posteriormente, no mundo do trabalho.
Na Conferência Mundial de Educação para Todos, realizada em Jomtien, na Tailândia, em 1990, foram definidos quatro pilares da educação para o século XXI que deveriam ser a meta para o desenvolvimento educacional em todos os países que assumiram e assinaram a carta de intenções, resultado desta conferência. Esses pilares são: Aprender a conhecer; Aprender a fazer; Aprender a viver com os outros; Aprender a ser.
Percebe-se que são objetivos que vão muito além da informação ou mesmo do mero desenvolvimento de um conhecimento intelectual. Contemplam toda a formação humana e social da pessoa e envolvem conhecimento, comportamento, conceitos, procedimentos, valores, atitudes; enfim: o saber, o fazer e o ser. Um ensino intelectualista, conteudista, calcado apenas na transmissão passiva de conhecimento de forma fragmentada, não possibilita a efetivação desse projeto.
Segundo Garcia (2005),
esta orientação ganhou força nas propostas educacionais contemporâneas em todo o mundo e que permeiam o discurso pedagógico internacional, pois respondem também a uma filosofia pragmática presente na atualidade que impera no mundo globalizado e mercantilizado. É fundamental que o profissional do século XXI seja competente, e ser competente hoje é saber fazer.
Ressalte-se, entretanto, que saber fazer implica, antes de mais nada, o domínio do saber, a capacidade de pensar, refletir, desenvolver o raciocínio crítico.
Exige-se hoje dos profissionais em seus postos de trabalho a posse de um perfil abrangente que contemple, além do domínio de conhecimentos técnicos e científicos específicos vinculados à sua área, uma postura ética, um comprometimento político-social e o desenvolvimento de competências que lhes possibilitem atender ao que está estabelecido no perfil de um profissional competente na sua respectiva área de ação. O conceito de competência é multidimensional e não se esgota na sua dimensão técnico-científica, vai além (RIOS, 2001).
De acordo com Brígido (2001, apud Polidori e Fonseca, 2005, p.3), na vida profissional a noção de posto de trabalho foi substituída pela de certificação no ofício, exigindo a noção de conhecimentos, de competências e de capacidades. As competências constituem um perfil reconhecido e bem identificado, e as capacidades se traduzem em competências mensuráveis e observáveis. Assim, ao invés do trabalhador ter que se adaptar às tarefas propostas ou aos conteúdos exigidos, este deverá ter habilidades e capacidades de desempenho para desenvolver uma função produtiva. O sistema educativo ficou responsável por emitir diplomas sobre os conhecimentos básicos das profissões, e o sistema produtivo ficou responsável pela certificação da competência desenvolvida. O processo de formação dos profissionais, que passa pela realização de um curso de graduação, oferece formas de aprendizagem e possibilidades de ação que nem sempre atendem a esta necessidade.
Sabe-se que são as Diretrizes Curriculares Nacionais (DC), propostas pelo MEC – Ministério da Educação e da Cultura, documentos norteadores da construção do currículo de um curso de graduação, seja bacharelado ou licenciatura, que apresentaram estas abordagens diferenciadas e que exigem o desenvolvimento de um programa que atenda a estas novas exigências. Desta forma, os Projetos Pedagógicos dos Cursos (PPCs) de Graduação devem organizar seus cursos de acordo com as orientações destas Diretrizes Curriculares.
Constata-se que neste particular há uma grande dificuldade das Instituições de Ensino Superior e de seus profissionais docentes no entendimento e, mais acentuadamente, em relação à concretização dessas exigências.
Como desenvolver habilidades e competências na sala de aula universitária? O que isto quer dizer? O que são, na verdade, habilidades e competências? Estas e muitas outras indagações permeiam os corredores das IES, e as respostas não chegam, e quando há ressonância às indagações, elas são compreendidas, talvez, intelectualmente, mas a transferência para a prática docente não acontece. Quase sempre há um abismo entre o que está estabelecido nas DCNs e nos PPCs no que diz respeito ao desenvolvimento de habilidades e competências e o que se pratica no espaço e tempo de formação.
A grande dificuldade encontra-se na compreensão do que realmente são as habilidades e competências que devem ser desenvolvidas e como devem ser aplicadas de acordo com as DCNs. Não há um consenso entre os pesquisadores da área educacional sobre o conceito de competências. Há vários elementos que variam entre uma definição mais simples até o envolvimento de vários outros elementos que interferem neste processo.
Brígido (2001, apud Polidori e Fonseca, 2005, p. 3) afirma que as competências são classificadas em três categorias: as específicas, que correspondem aos conhecimentos, destrezas e atitudes requeridas para o desempenho numa atividade profissional específica; as genéricas, que são comuns ao conjunto de setores, mas correspondem a uma mesma ocupação; e as essenciais, também chamadas de habilidades, que se referem a resoluções de problemas, comunicação e atitudes pessoais ou competências aritméticas, uso da informação tecnológica e uso da linguagem moderna.
Para Perrenoud (2000, p. 28), competência significa “[...] uma capacidade de agir eficazmente em um determinado tipo de situação, apoiada em conhecimentos, mas sem limitar-se a eles”.
Para Kuenzer (2002, p. 6), no entanto, “competência e habilidades relacionam-se com a capacidade que o profissional deve ter para [...] articular a situação a ser enfrentada com outras situações que contiveram elementos similares, bem como a capacidade para articular conhecimentos teóricos a conhecimentos práticos, reafirmando a compreensão de que a simples existência de conhecimentos, sejam tácitos ou teóricos, não é suficiente para desencadear ações competentes. E estas competências estarão tão mais presentes quanto mais ricos forem as experiências vividas, os conhecimentos adquiridos, o acesso a informações, e assim por diante”.
É importante ressaltar que um profissional competente deve dominar a técnica, mas também saber executá-la em um contexto de competitividade e de estresse, o que exige o desenvolvimento de habilidades cognitivas, atitudinais e socioemocionais. A competência se manifesta e existe, portanto, no ato de execução.
No caso específico da docência no ensino superior, somos profissionais professores competentes no contexto concreto da sala de aula?
Entende-se, portanto, competência como a capacidade de mobilização, operacionalização e instrumentalização de recursos adequados na resolução de uma situação complexa. Assim, nesta relação que se estabelece entre conhecimentos, saberes, capacidades mentais, habilidades, experiências anteriores, “os saberes-recursos” não constituem a competência, mas interferem no aumento ou na diminuição das chances de o profissional ser competente.
Competência é a capacidade de mobilizar o que se sabe para realizar o que se deseja. Quem nada sabe certamente é incompetente; e quem nada deseja, ou o inapetente, está na antessala da incompetência. Além do desejo, importa também o que se deseja. As metas que almejamos situam-se em um cenário de valores socialmente acordados; há as que valem e as que não valem (MACHADO, 2006).
A ação do professor ajuda a explicitar o fato de que o conhecimento não é garantia de competência. Um professor certamente deve conhecer os conteúdos que ensina, mas sua competência profissional somente se revela em ações específicas, como a escolha da escala adequada para tratamento dos temas que ensina. Um professor competente não subestima a capacidade dos alunos, nem os trata como se fossem especialistas.
Em uma frase: a competência é um atributo das pessoas, exerce-se em um âmbito bem delimitado, está associada a uma capacidade de mobilização de recursos, realiza-se necessariamente junto com os outros, exige capacidade de abstração e pressupõe conhecimento de conteúdos.
A falta de conhecimento é o primeiro sintoma de incompetência. A incapacidade de abstrair o contexto é uma forma de incompetência, e não se pode ser competente sem integrar-se com os outros, sem levar em consideração os outros.
Os conteúdos curriculares não devem ser tratados como fim, e sim como meio de prover as competências entre os alunos. As disciplinas são o alimento das competências. Não há professores de competências, e sim de disciplinas. O desafio posto, então, é como trabalhar os conteúdos de maneira a abarcar as competências.
Há várias iniciativas capazes de preencher a lacuna existente entre os conteúdos e as competências. Acredita-se na criação de centros de interesse, projetos, ou seja, a partir daquilo que chama a atenção do aluno. Por exemplo, o aluno não está interessado no conteúdo, mas no celular, no computador. Então, como aproximar o interesse dos alunos do interesse da escola? Outro ponto é explorar os conteúdos na perspectiva das ideias fundamentais, não a partir dos pormenores que enchem os livros didáticos. Por exemplo, ao estudar História, estamos falando de construção de narrativa, característica que certamente faz com que esse conteúdo se aproxime dos demais com facilidade.
Embora as competências sejam avaliadas em conjunto, ou seja, os professores devem ser avaliados a partir das competências que constroem com os alunos, não podemos falar em um bom professor que não cumpra o papel de mediador. Mediar interesses e não somente conflitos. O bom professor precisa conhecer o conteúdo que ensina para seduzir e, a partir dele, conseguir contar uma boa história, construir uma narrativa. Sem isso, os conteúdos viram fatos e cenas isolados. Todo professor precisa de um bom case em sala de aula, e isso quer dizer saber preparar uma aula de maneira a amarrar as pontas.
O ensino fragmentado em disciplinas está perdendo força nas instituições de ensino. Para melhorar a qualificação dos egressos, a tendência é trabalhar o desenvolvimento de competências profissionais e socioemocionais.
Pode-se considerar, portanto, que o desenvolvimento de competências requer, além dos conhecimentos, um rol de atitudes e atividades que o mundo do trabalho e a vida em sociedade estão a exigir das pessoas.
Nesse sentido, é necessária, como passo inicial para a incorporação desse elemento ao trabalho pedagógico na universidade, a busca de uma melhor compreensão do que seja trabalhar com a pedagogia das competências, ou seja, a capacidade de um profissional tomar decisões com base nos conhecimentos, nas habilidades e atitudes associadas à profissão, para solucionar os problemas complexos que se apresentam no campo de sua atividade. Consequentemente, trabalhar na perspectiva do desenvolvimento de competências implica um redimensionamento epistemológico e pedagógico que leve a uma transformação do processo de ensino-aprendizagem-avaliação.
Referências
ARAÚJO, R. M. L. Desenvolvimento de competências profissionais: as incoerências de um discurso. 2001. Tese (Doutorado em Educação) – Faculdade de Educação da UFMG, Belo Horizonte, 2001, 192 p.
BRÍGIDO. Raimundo Vossio. Certificação e Normalização de Competências: origens, conceitos e práticas. Boletim Técnico do SENAC – publicação quadrimestral eletrônica. Volume 27, número 01, janeiro/abril 2001.
GARCIA, Lenise Aparecida Martins Garcia. Competências e Habilidades: você sabe lidar com isso? Educação e Ciência On-line, Brasília: Universidade de Brasília. Disponível em: http://uvnt.universidadevirtual.br/ciencias/002.htm. Acesso em: 12 jan. 2005.
KUENZER, Acácia Z. Conhecimento e Competências no Trabalho e na Escola. BoletimTécnico do SENAC – publicação quadrimestral eletrônica. Volume 28, número 02, maio/agosto 2002.
MACHADO, Nilson José. Sobre a ideia de competência na Universidade de São Paulo - Faculdade de Educação. njmachad@usp.br, 2006.
PERRENOUD, Philippe. Avaliação: da excelência à regulação da aprendizagem – entre duas lógicas. Porto Alegre: Artes Médicas, 1999.
__________. Dez novas competências parta ensinar. Art Med, 2000.
TANGUY, L. Racionalização pedagógica e legitimidade política. In: ROPÉ, F.; TANGUY, L. (Org.). Saberes e competências: o uso de tais noções na escola e na empresa. 4. ed. Campinas: Papirus, 2003, p. 25-67.
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